Por Sandra Almada
Quantos negros cabem no empreendedorismo? Essa é a pergunta que buscamos responder aqui.
De menino de rua, sem nenhum nível de escolaridade, ao lugar de primeiro negro brasileiro a receber o prêmio Schwab de Empreendedorismo Social e Inovação, oferecido pelo Fórum Econômico Mundial, Celso Athayde trilhou uma trajetória de muito trabalho, ousadia, inventividade e sucesso. Criador da Central Única das Favelas, a CUFA, e do grupo de empresas Favela Holding, o empresário e empreendedor social foi escolhido por Carreira Preta para responder à pergunta que dá título a esta entrevista.
Celso quer ingressar na universidade não apenas como fez em Harvard, há alguns anos, como convidado para realizar uma bela palestra sobre seu trabalho. “Acho que todos os negros podem empreender, mas não sejamos ingênuos. Sem formação, sem informação, sem conhecimento sobre a linguagem do mercado não é impossível, mas fica tudo mais difícil”, afirma.
CARREIRA PRETA — Como é possível empreender em grande escala se 70% da população negra vive em situação de extrema pobreza?
CELSO ATHAYDE — Eu acho que todos os negros cabem no empreendedorismo. Ainda que uma parte deles na condição de empregador e outros na roda do colaborador, que faz parte da cadeia do empreendedorismo, da empregabilidade. Mas, objetivamente, quando se fala de empreender a gente tem que entender que tem dois tipos de empreendedor. Aquele que faz por necessidade e que pode se desenvolver e virar um grande empreendedor ou não. E aquele que simplesmente vai para a feira aumentar seu orçamento.
O que significa dizer que essa grande maioria de pretos que tem baixa renda ou baixíssima renda são os que mais têm tendência para empreender porque seus recursos são baixos e eles precisam complementar essa renda. Então você vai ver um vigia ou um porteiro trabalhando no final de semana vendendo peixe, vendendo laranja. Ou seja, você vai acabar vendo uma série de profissionais desenvolvendo outras atividades para poder complementar sua renda e para poder dar boas condições de vida para os seus filhos. Como um motorista de Uber, por exemplo, que não é empregado, o carro é dele. Ele apenas empresta seus serviços numa relação com Uber ou com um outro aplicativo qualquer.
CARREIRA PRETA — O senhor diz com frequência que os pretos são economicamente “potentes”. Por quê?
CELSO — Porque quando você olha e percebe que 40% da economia brasileira são mobilizados pelos pretos, isso significa dizer que os pretos consomem e, portanto, produzem, 2 trilhões por ano. O que significa dizer, então, que estão nessa cadeia de forma muito expressiva. Quando você olha para os números do IBGE você percebe que a quantidade de empreendedores que estão na base da pirâmide é muito grande. E a gente sabe que na base da pirâmide é onde está a maioria dos pretos. O SEBRAE, por sua vez, informa que 50% dos empreendedores brasileiros se definem como negros ou pardos. Mesmo se encaixando na categoria de micro ou pequenos empresários, isso é significativo. Mas a gente também não pode ser ingênuo ou estimular que todo mundo seja um fenômeno do futebol, como não se pode imaginar que todo mundo vai ser um grande empresário. Haverá sempre quem vá vender o carnê do Baú da Felicidade, mas nem todo mundo vai conseguir ser Sílvio Santos.
CARREIRA PRETA — Não se está, portanto, iludindo as pessoas.
CELSO — Não. Quando você estimula o empreendedorismo estimula o avanço dos pretos e das pretas do Brasil. Incentiva-os a almejar e alcançar espaços mais relevantes de poder, prestígio, reputação que a gente sempre está buscando, por meio dos estudos, dos sonhos, das inspirações e aspirações. Então é preciso acreditar que cabem todos. E aqueles que eventualmente não conseguirem se tornar os empreendedores que sonharam, podem ser pequenos empreendedores, profissionais autônomos ou, na pior das hipóteses, serão colaboradores de empreendedores pretos que ascenderam a partir dessa aspiração que a gente estimulou.
CARREIRA PRETA — O que é um “negócio social”?
CELSO — É aquele que acontece, por exemplo, quando moradores das favelas fazem negócios, parcerias com empresas para que a gente possa desenvolver ações comerciais. São negócios que existem não só para que as pessoas que estejam nesses territórios consumam produtos, mas para que possam, também, fazer gestão daquilo que vêm consumindo naturalmente.
CARREIRA PRETA — A Favela Holding trabalha com o empreendedorismo social, com os negócios sociais. De onde surgiu a ideia?
CELSO — A Central Única das Favelas, a Cufa, é uma ONG que nós criamos há 20 anos, cujo objetivo era valorizar a vida das pessoas que moram nesses territórios. A base da Cufa era formar, qualificar essas pessoas – das quais 80% são negras – para que elas pudessem disputar espaços fora da favela. O tempo passou, a Cufa ganhou muitos prêmios, fizemos muitas ações. E criamos uma forma de continuar o projeto de revolução social, pela via econômica, uma vez que estamos num país capitalista, onde, se você não tem dinheiro, não representa muita coisa.
Então a gente cria o movimento Liga de Empreendedores Comunitários das Favelas, com 240 parceiros, tendo o SEBRAE e a Fundação Dom Cabral qualificando essas pessoas. Deu muito certo. As empresas que buscavam parcerias nesses territórios começaram a encontrar um interlocutor em escala, a princípio no Rio de Janeiro. E aí surge a ideia de fazer uma holding social. Eu já ouvia falar de negócios sociais só que não entendia bem o que era aquilo. Hoje a liga se transformou na Favela Holding, um grupo com mais de 20 empresas atuando em centenas de favelas e oferecendo milhares de empregos.
CARREIRA PRETA — Pode dar exemplos de como funciona, na prática, a Favela Holding?
CELSO — A Favela Holding é uma empresa de participação com várias SPEs (Sociedades de Propósitos Específicos). Uma delas é a Favela Log, que começou a trabalhar com a logística, com a distribuição da Duracel, da Pampers, da Natura, e assim por diante. Tem outras empresas, como a Favela Vai Voando, uma parceria da TAM, da Azul e da Gol com a interveniência da Fly Tour, que é uma empresa que promove venda de passagens aéreas dentro das favelas com franquias. Parte do percentual — em torno de 10%, 12% do total de passagens vendidas – fica com o empreendedor, que dá emprego para outras pessoas. Temos, por exemplo, uma empresa de pesquisa, que é o Data Favela. Estamos lançando em novembro a Favela Money, uma empresa de vendas on-line, com investimento de R$ 37 milhões. A gente tem a Digital Favela, uma empresa de microinfluenciadores de favelas. Temos clientes como Claro, Tik Tok, Ambev, Banco Santander, que usam os serviços de microinfluenciadores para promoverem seus negócios. Teremos também, em breve, empresas de educação a distância, e contamos com várias franquias na área de comida, segmentos de mercado para os empreendedores devem estar atentos.
CARREIRA PRETA — Pode destacar o “retorno social” de algum desses projetos?
CELSO — A Natura tinha alguns problemas na área de distribuição. Quando você trabalha com uma empresa de logística encontra problemas para subir de caminhão, de Kombi, em algumas favelas. Em algumas delas o morro é muito íngreme. E há ainda problemas de roubo ou furto. E aí a gente criou um projeto chamado Recomeço, que é um programa de ex-presidiários que trabalham tendo uma oportunidade na vida. Com o Recomeço a gente diminuiu, zerou praticamente, esses roubos e a Natura tem, atualmente, 90% de efetividade nessas áreas. E, ao mesmo tempo, a gente construiu uma grande ação social, dando oportunidade para várias pessoas que vêm do cárcere e que com certeza não teriam, ou sequer tiveram, a chance de voltar para o mercado de trabalho. É um emprego com carteira assinada. E tudo isso achamos muito importante.
CARREIRA PRETA — Diga algo que o senhor ainda deseja conquistar. E algo importante que já conquistou.
CELSO — Ganhei o maior prêmio do mundo na área de empreendedorismo de impacto feito por Klaus Schwab, o cara que criou o Fórum Econômico Mundial. Em Davos se entrega esse prêmio para 30 personalidades do mundo. Cada país sugere 150 nomes. Aí eles têm centenas de milhares de nomes, entre os quais escolhem os empreendedores mais expressivos, de acordo com seu critério. Ganhei o prêmio Empreendedor Social de Impacto e Inovação.
CARREIRA PRETA – E gostaria de…
CELSO – Eu sonho em fazer faculdade, ter informações mais sólidas. Mas sei que não é só isso que a faculdade lhe oferece. É lá que está a base que o estudo lhe dá para você ter uma compreensão sobre determinados temas. Fazer uma leitura, uma interpretação mais apurada e consolidada sobre determinados assuntos. Portanto, por mais que eu não tenha me formado, não tenha feito faculdade, eu avancei. Mas, ao mesmo tempo, eu sinto falta. Não necessariamente da faculdade, mas da troca de cultura, de informação, de experiência, daqueles alunos no nosso dia a dia. Esse enriquecimento cultural coletivo que a gente tem em determinados ambientes. Então, eu não sou do tipo que renuncia ou tira o valor do terceiro grau apenas porque a gente alcançou um relativo sucesso na atividade que a gente exerce. Eu só acho que, quanto mais formação e informação a gente tiver, a gente melhora a nossa performance na atividade que escolheu.
Meus três filhos entraram na faculdade. Um fez Engenharia, um cursou Marketing e outro está fazendo Economia. Porque eu incentivo isso, porque sei o quanto isso é importante. E acho que a educação formal é essencial, tanto para a formação quanto para o desenvolvimento de um país. Um país desenvolvido deve ter sua população capacitada dentro da lógica global.
CARREIRA PRETA – O senhor se considera uma exceção?
CELSO – É muito difícil você empreender formalmente quando não sabe fazer uma raiz quadrada, quando você não sabe a linguagem do negócio, quando você não sabe o que quer dizer share, trade, quando você não sabe quais são as linguagens do mercado. É muito difícil, mas é possível. E tanto é possível que eu não sou uma exceção. Você vai achar algumas pessoas que encontraram esses caminhos. Mas se a gente tivesse mais habilidade, conhecimento, seja de línguas, seja de expertise naquilo que a gente já é especialista, a gente daria voos mais altos e contribuições mais sólidas para o nosso projeto pessoal e para o nosso projeto coletivo. Mas, como minha formação foi muito baixa, eu tenho dificuldade de interpretar texto porque eu sou funcional. Isso lhe cria um déficit e você passa a ter dificuldade para se desenvolver em certas áreas. E aí você precisa compensar isso com outras habilidades e com muita sorte também.
CARREIRA PRETA – Deixe uma mensagem para nosso leitor.
CELSO – Do lugar que eu venho a gente sempre tem muito medo de falar de dinheiro. Parece que é proibido, que alguém nos ensinou que dinheiro é coisa que não presta. E a gente tem até vergonha de comprar um bem, ter um automóvel. A gente se sente como se estivesse oprimindo outras pessoas. É como se a gente se convencesse de que não temos direito a ter participação na riqueza, quando, na verdade, a favela produz 119 bilhões por ano e os pretos produzem 2 trilhões por ano. Ou a gente divide a riqueza produzida pelos próprios pretos com outros pretos ou vamos continuar a dividir as consequências da miséria que a elite sempre produziu.